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L’Étrange Festival apresenta uma programação arrebatadora em sua 29ª edição

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De 05 a 17 de setembro, aconteceu a 29ª edição do L’Étrange, um dos festivais de cinema fantástico mais tradicionais do mundo. Sediado em Paris, o L’Étrange apresentou uma extensa programação dedicada às produções de horror, suspense, policial, ação, ficção científica, fantasia, erótica e outros gêneros relacionados. Com exibições realizadas no Forum des Images, um complexo bem localizado e com excelentes salas, o festival se destaca por uma programação que valoriza, além das novas produções, o resgate de verdadeiras joias escondidas e a celebração de alguns clássicos que jamais ficam fora de pauta. É o caso, por exemplo, de Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991), de David Cronenberg, exibido em uma nova remasterização em 4K. Também na linha dos clássicos, Uma Noite Alucinante 2 (The Evil Dead 2, 1987), de Sam Raimi, foi exibido dentro do programa “carte blanche”, em que um convidado notável tem carta branca para apresentar sua própria seleção de filmes que, de alguma forma, fazem parte de seu repertório e de sua compreensão de cinema de modo geral. Este ano, a categoria “carta branca” contou com quatro convidados que montaram programas nada óbvios: o primeiro deles foi o cineasta galês Gareth Evans, que tomou a palavra e apresentou as sessões de cada um dos filmes selecionados. Sua variada seleção passou de Charles Chaplin e Buster Keaton a Takashi Miike, tendo característica predominante a comédia – Uma Noite Alucinante 2, um dos filmes de destaque, traz a perfeita mistura do filme gore com a comédia slapstick. Já a provocante seleção de Kirill Serebrennikov, cineasta russo, manteve o foco em filmes de cunho surrealistas como O Discreto Charme da Burguesia (Luis Buñuel, 1972), As Mil e uma Noites (Pier Paolo Pasolini, 1974), e uma disputadíssima sessão de A Montanha Sagrada (Alejandro Jodorowsky, 1973), na presença do realizador. Os quase 500 lugares da sala não deram conta da quantidade de público interessado e muita gente (incluindo eu) acabou ficando de fora. 
Difícil passar incólume pela seleção de Olympe de Gê, cineasta especializada em filmes de sexo explícito, educadora sexual e podcaster. Dividido em três sessões: “Como filmar bem o sexo?”, “E a ternura, droga?” e “O sexo para se amar”, o programa elaborado pela cineasta, feminista militante, trouxe um olhar extremamente cuidadoso, delicado e reflexivo para a temática do sexo no cinema. Isso ficou ainda mais evidente pela forma como ela apresentou cada um dos filmes e como conduziu os debates com alguns dos realizadores e realizadoras após as sessões. A última sessão teve início com o vídeo Zen Pussy: A Meditation on Eleven Vulvas (2002), feito por Joseph Kramer com a assistência de Annie Sprinkle. Exibido em loop, o filme apresenta 11 vulvas e como elas reagem à respiração das mulheres que estão sendo filmadas. Na apresentação, Olympe de Gê afirmou ter escolhido este curta-metragem para introduzir a sessão na intenção do público se acostumar com a visão das vulvas na tela, uma forma de dissipar a vergonha. Excelente escolha! Mat et les gravitantes (2020), filme de graduação da jovem diretora Pauline Pénichout na escola de cinema La Fémis, é um documentário que traz um olhar íntimo e afetuoso para as suas protagonistas, em especial Mat, que organiza com as suas amigas um workshop de “auto ginecologia” no qual as jovens observam com a ajuda de iluminação, câmeras e espelhos o colo do próprio útero. Já o curta-metragem Les îles (2017), do proeminente diretor queer Yann Gonzalez, abraça o formato fabular e os artifícios da cor e do som para falar de desejo e de encontros. Linda/Les and Annie (1989), dirigido por uma das grandes referências do cinema pornográfico, Annie Sprinkle, é um documentário divertido sobre Les Nichols, namorado da cineasta, e a experiência dele como homem transexual. Apesar de adotar em alguns trechos de seu discurso um exotismo incômodo (assumido pela própria diretora em depoimento recente), é evidente que se trata de um filme bastante terno e que compõe de maneira ideal a seleção atenta de Olympe de Gê.

Les îles (2017)

Outro programa absolutamente marcante foi o do Chaos Reign, em celebração aos 10 anos do blog homônimo. Especializado em filmes raros e pouco óbvios, o site é um importante veículo dentro da crítica francesa dedicada ao cinema de gênero e culto. Os filmes que compuseram as sessões foram selecionados por Romain Le Vern, fundador do blog. O primeiro dia do programa foi composto pelo incontornável cult Scorpio Rising (1963), do recém-falecido cineasta experimental Kenneth Anger, uma das figuras mais emblemáticas do cinema americano. O longa-metragem mexicano Perdidos en la noche (2023), é certamente um dos melhores filmes recentes exibidos no festival. Dirigido por Amat Escalante, este suspense de conflito de classes nos conta sobre um jovem que tenta desvendar o desaparecimento de sua mãe, uma ativista que lutava contra a implantação de minas na região em que viviam. Quando começa a trabalhar como faz-tudo para uma família rica, o rapaz fica muito perto de saber a verdade. A última sessão do programa Chaos Reign trouxe filmes profundamente impactantes, como o curta-metragem estudantil Bien sous tous rapports (1996), da feroz cineasta Marina De Van, mais conhecida entre os fãs de horror pelo longa-metragem Em minha pele (2001). No curta, a própria Marina interpreta a jovem filha de uma família burguesa que a observa fazer sexo oral no namorado e aponta os defeitos em sua performance. Mas o grande destaque do programa ficou para Silip (Elwood Perez, 1985), exploitation filipino que foi revelado pelo Festival de Sitges em 2007 graças ao programa Mondo Macabro. Ambientado em um lugar paradisíaco à beira-mar, Silip mostra a trajetória de três jovens e de que maneira elas lidam com o seu desejo em um contexto dominado pelo machismo e pela repressão religiosa. A sessão foi uma experiência absolutamente chocante e, ao mesmo tempo, arrebatadora. Sem dúvida, o momento mais inesquecível de todo o festival, e que pontua a sua importância como difusor de um tipo de cinema valioso que, caso contrário, permaneceria oculto do público.

 

Silip (1985)

Esta edição do festival realizou homenagens aos Ramsay Brothers com quatro longas-metragens de horror da dupla indiana, e a Bert I. Gordon, um dos grandes diretores independentes dos anos 1950, falecido em 2023 aos 100 anos. Conhecido por suas histórias de criaturas gigantes, o diretor foi uma dessas figuras maiores que a ficção (sem trocadilho proposital com o apelido pelo qual ficou conhecido, Mr. B.I.G), e a homenagem prestada pelo L’Étrange exibiu seis de seus filmes mais celebrados.
No programa “Les pépites de L’Étrange” havia títulos irresistíveis, alguns inéditos nas salas da França, outros em cópia nova. Thundercrack! (1975), dirigido por Curt McDowell e escrito por George Kuchar, passou em sua versão integral, com 2 horas e 38 minutos de duração. Pornô queer difícil de descrever (é necessário ver para crer), esta obra-prima do mau gosto é o encontro de A casa sinistra (1932) com o art house e uma boa dose de safadeza. Mais uma das experiências deliciosas e inesquecíveis do festival. Dois cult de ficção científica também chamaram a atenção dentro da programação, sendo um clássico incontestável e um pouquíssimo visto: As esposas de Stepford (1975), de Bryan Forbes e protagonizado pela formidável Katharine Ross, já é consagrado como um dos grandes filmes de ficção científica de todos os tempos. Tendo como base o romance de Ira Levin, esta revisão deixou um gosto amargo devido ao pessimismo típico do autor de O Bebê de Rosemary. Bem menos conhecido, Brain Dead (Adam Simon, 1990), traz Bill Pullman e Bill Paxton atuando juntos em uma narrativa que circula entre drama e comédia body horror e horror psicológico. Essa estrutura um tanto errante acaba resultando em um filme mediano, mas, ainda assim, repleto de charme.
Entre os mais recentes, o sul-coreano The Childe (Park Hoon-jung, 2023), foi o filme de abertura do festival, e ganhou o público com uma irresistível mistura de ação, suspense violento e comédia. Dirigido pelo roteirista do memorável Eu vi o Diabo (2010), conta a história de um ingênuo boxeador filipino que é levado para a Coreia do Sul na promessa de encontrar seu pai, que nunca conheceu. No caminho, ele se vê perseguido por um assassino implacável, por uma mulher misteriosa e por seu irmão coreano. O japonês Mondays: See You ‘This’ Week! (2002), de Ryo Takebayashi, lembra Dois minutos além do infinito (2020), de Junta Yamaguchi, que fez um baita sucesso nos festivais daquele ano; ambos são uma espécie de “dia da marmota”. Mondays, entretanto, não empolga com sua narrativa um tanto naïve. Pandemonium (Quarxx, 2023), também não impressionou. Longa francês em episódios, promete uma homenagem aos clássicos do horror, mas acaba soando pretensioso e exagerado. Já Moon Garden (Ryan Stevens Harris, 2022) surge com uma proposta um tanto diferente na produção contemporânea. Mergulhando nos pesadelos de uma menininha de cinco anos em coma e sua jornada na tentativa de voltar para a consciência, resgata a estética de filmes como A companhia dos lobos (Neil Jordan, 1984) e A casa dos sonhos (Bernard Rose, 1988) na construção de sua própria fantasia. Um de seus méritos, sem dúvida, passa pela escolha em filmar com película, cujo efeito de granulação bem contribui para o aspecto onírico dos pesadelos da garotinha.

 

Moon Garden (2022)

Diretor prolífico e um dos mais interessantes de se acompanhar no cinema francês contemporâneo, Bertrand Mandico é assíduo no L’Étrange há anos. Nesta edição, o diretor volta ao festival com a sessão “Autour de Connan”, formada pelos curtas-metragens Rainer: Vicious Dog in Skull Valley e Nous les barbares (ambos de 2023). Os dois  filmes estão conectados ao universo de Connan (2023), seu longa-metragem mais recente, que devo conferir dentro das próximas semanas. De qualquer forma, é sempre um prazer ver o diretor exercitar seu estilo-assinatura artesanal e brutal ao lado de suas atrizes-obsessão: Elina Löwensohn, Nathalie Richard e outras.
Outra sessão especialíssima foi o novo corte de Calígula (Tinto Brass, 1979/2022), conhecido por ser um filme “sem dono” depois que seu produtor o tornou completamente descaracterizado do que deveria ser originalmente. A versão exibida no festival se trata de uma remontagem de quase 3 horas de duração coordenada por Thomas Negovan a partir de 90 horas de takes encontrados, jamais utilizados em nenhuma das versões anteriores, na tentativa de se aproximar ao máximo do roteiro original e fazer justiça às atuações – as cenas de sexo explícito foram limadas neste corte. O resultado é um filme estranho, com alguns espaços vazios bem preenchidos pela trilha sonora, e com uma aura trágica, brutal e absolutamente envolvente.

 

Polia & Blastema (2021)

O festival foi encerrado em um clima um tanto místico com a reprise do programa “Le cycle Begotten”. Ao apresentar a sessão, o diretor E. Elias Merhige pediu que o público se concentrasse o máximo possível, inclusive durante os 4 minutos de tela preta ao final do filme, a fim de entrar numa espécie de transe coletivo. Foi divertido perceber como o público do festival, sempre muito apaixonado e envolvido, acatou a sugestão e permaneceu imerso à pujante sessão composta pelos curtas-metragens Polia & Blastema (2021), Din of Celestial Birds (2006) e ao seu clássico cult, o enigmático Begotten (1989), um filme mítico que nunca deixa de provocar reações intensas. Com essa programação cuidadosa, corajosa e muito bem fundamentada através de textos de apoio, de apresentações e debates, o L’Étrange Festival reitera sua relevância entre os principais festivais de cinema fantástico do mundo. A 29ª edição acabou, mas as sessões experienciadas ficarão na memória por muito, muito tempo.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com doutorado-sanduíche na Universidade de Sorbonne (Paris), ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Criou em 2017 a revista eletrônica Les Diaboliques, onde compartilha sua paixão pelos filmes de horror.

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1 Comment

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  1. Ruby

    17 de outubro de 2024 at 17:59

    J’ai parcouru rapidement et je crois comprendre l’essentiel! Bien joué!

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