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Morte e vida em Petrus Cariry

Os três longas do diretor cearense propõem reflexões sobre a morte como renovação, retratando vidas miseráveis que lutam para adquirir significado numa jornada de autoconhecimento

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Mãe e filha, Petrus Cariry

As temáticas da solidão e do oblívio fazem parte da obra do cineasta cearense Petrus Cariry desde os curtas-metragens que ele realizou em meados dos anos 2000, quando iniciava na carreira de diretor. A velha e o mar (2004), sobre uma idosa que vive sozinha em uma ponte abandonada, sintetiza estas ideias que permeariam o cinema de Petrus no futuro, enquanto que Dos restos e das solidões (2006), documentário filmado na cidade fantasma de Cococi, funciona como uma espécie de ensaio para o seu segundo longa-metragem, Mãe e filha (2011), ambientado na mesma cidade. Em 2007, Petrus realizou o seu primeiro filme em longa-metragem, O grão, lançado comercialmente em 2010, em que sobrepõe às suas reflexões a temática da morte, cujo assunto aprofundou através de diferentes abordagens nos dois longas-metragens que viriam a seguir, Mãe e filha e Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois (2017).

Filmado no município de Itaiçaba, no Ceará, O grão é um conto moral sobre uma família cuja matriarca (a anciã de uma casa onde moram ainda seu filho, a esposa dele e os dois filhos do casal) está muito adoentada. Vivendo na miséria e, sabendo a fatalidade que lhe espera, a mulher compartilha com o neto, um pouco a cada dia, a história de um rei e uma rainha que, inconformados com a morte de um filho que fora tão sonhado, terminam por se dar conta de que a dor da perda vem para todos, pois a morte é tão certa quanto a vida.

Petrus filma o presente como algo estancado; o que quer que aconteça, acontecerá sempre em um tempo futuro. A família está estagnada, presa a um marasmo, estéril como aquelas terras, de onde não é possível obter sustento. Com a avó moribunda e o pai alienado na bebida e em pequenos serviços que pouco rendem dinheiro, nenhuma daquelas pessoas dá sinal de prosperidade, exceto a filha mais velha, uma moça que tem planos de se casar com um rapaz da região e deseja deixar a casa em que vivem para morar em Fortaleza, contrariando a vontade dos pais.

O grão inaugura algumas das marcas que fariam parte do cinema de Petrus, como a inserção de uma cena de estrada nos minutos iniciais, o que traz uma ideia de afastamento para lugares poucos usuais, onde histórias muito pessoais devem ser contadas e demônios expurgados. O flerte com o cinema de horror, a ser percebido com mais clareza em seus filmes posteriores, também se faz presente neste longa-metragem, com as cortinas da casa serpenteando nos cômodos vazios e sugerindo uma estranha presença metafísica. Não seria exagero afirmar que o retorno às regiões mais rurais do Ceará também compõe uma característica do cinema de Petrus, sempre carregado pela ideia da volta à terra, às origens, o que implica em uma viagem de autodescoberta e o confronto com algo que ficou para trás, mas que precisa ser enfrentado para que se dê prosseguimento. Uma característica peculiar para um diretor cujo próprio sobrenome remete às suas origens artísticas, regionais e familiares (Petrus usa o “Cariry” de seu pai Rosemberg, nascido na região do Cariri, no sul do Ceará).

O encerramento de O grão encontra força com a sugestão da renovação do ciclo natural da vida: no lugar da estagnação e esterilidade, a esperança e a fertilidade, em um marcante plano final.

Enquanto em O grão a morte se apossa de uma mulher idosa, em Mãe e filha o elemento que move a trama é um bebê natimorto, o que provoca uma estranheza imediata levando em consideração de que, para o senso comum, é natural que a morte chegue para alguém que já viveu bastante, mas é antinatural que uma pessoa morra antes mesmo de nascer.

Mais uma vez tendo o Ceará como cenário, Petrus filmou no distrito de Cococi, localizado no sertão central dos Inhamuns. Um dia, Cococi foi uma cidade cheia de pompa, com muitos bailes. Em 1968, ao ser rebaixada à categoria de “distrito” devido a complicações políticas, foi abandonada pelos seus moradores, sendo conhecida até hoje como uma cidade fantasma, em ruínas. Petrus havia filmado a cidade em 2006 no documentário Dos restos e das solidões, algo como uma gênese de Mãe e filha, a história de uma mulher que abandonou aquele lugar para viver em Fortaleza, mas que agora precisa voltar com o filho natimorto para enterrá-lo próximo de sua mãe, avó da criança. A idosa vive sozinha na cidade fantasma, contando com a bondade e os favores de quem passa por lá.

É perceptível a maturidade e o cuidado de Petrus com os planos, os quais, sempre muito longos, dão espaço e respiro para que o espectador possa refletir e sentir o filme, com os pensamentos de suas personagens quase palpáveis. Mais uma vez, o diretor enfatiza o isolamento da cidade, com a protagonista ora tomando caronas, ora tendo que fazer longas e penosas caminhadas por uma estrada de terra.

Mãe e filha trata de um tema muito impactante e já visto no cinema brasileiro contemporâneo, mas com uma sensibilidade tremenda, e isso deve bastante à duração dos planos, o que torna a ação das personagens carregada de significados e potenciais reflexões. O telurismo surge com muita força neste filme; a viagem à terra de origem como uma jornada ao seu próprio íntimo, como se existisse dentro de si algo gritando para ser transformado.

Trabalhando com apenas duas atrizes, Zezita Matos e Juliana Carvalho, o realizador consegue criar imagens poderosíssimas, como a avó embalando o neto morto, a mãe integrando o corpo do próprio filho às ruínas de uma igreja, os animais em câmera lenta ou os cangaceiros fantasmas que assombram a região. Essas imagens não eliminam o caráter regionalista do cinema de Petrus, mas também o inserem em um panorama internacional a partir do momento em que estabelecem diálogo com realizadores como o russo Andrei Tarkovski e o tailandês Apichatpong Weerasethakul.

Em Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois, seu terceiro longa-metragem, Petrus encerra a chamada “trilogia da morte”. Diferente dos dois primeiros filmes, protagonizados por famílias miseráveis, Clarisse se passa no seio de uma abastada família cearense. A personagem do título, interpretada pela atriz Sabrina Greve, é casada com um bem-sucedido empresário austríaco, além de ser herdeira da fortuna de seu pai (Everaldo Pontes), porém um mal-estar relacionado à misteriosa morte prematura de seu irmão assombra a família. O pai, já idoso, tem como passatempos a taxidermia e a entomologia, sempre arrodeado pela morte.

Clarisse tem algumas das composições de planos mais impressionantes da cinematografia brasileira recente, com um precioso cuidado desde a iluminação à direção de arte. Petrus frequentemente faz referências às artes plásticas, cuja citação mais clara aqui é a do quadro Marat assassinado (ou A morte de Marat), do pintor francês neoclassicista Jacques-Louis David, de quem as principais obras datam do final do século XVIII. Pode-se vislumbrar ainda uma ponte com uma outra geração do cinema de terror brasileiro, através de O anjo da noite (1974), de Walter Hugo Khouri, o principal representante intimista e metafísico que se instalava dentro dos lares no horror nacional. Claro que, voraz construtor de imagens, Petrus faz essas referências não apenas pelo tema ou pelo clima sombrio, mas principalmente de maneira imagética.

Como em todos seus filmes, a cena final de Clarisse é combativa, insurgente. O sangue, quase sempre associado à morte, aqui representa a vida. A morte, afinal, não é o fim, mas um recomeço.

Originalmente publicado na revista Movimento, da Aceccine, em agosto de 2017.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com doutorado-sanduíche na Universidade de Sorbonne (Paris), ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Criou em 2017 a revista eletrônica Les Diaboliques, onde compartilha sua paixão pelos filmes de horror.

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