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Os garotos selvagens (2017) + Ultra pulpe (2018)

A mais bela das alucinações

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O diretor Bertrand Mandico, nascido em Toulouse, é um dos grandes destaques do cinema francês contemporâneo. Com seus filmes experimentais que envolvem uma deliciosa mistura de gêneros, tem circulado entre os principais festivais do mundo. Mas o seu interesse em questões de gênero não fica apenas no âmbito cinematográfico: o diretor frequentemente aborda a temática do gênero como identidade pessoal, tendo inclusive sido indicado ao Leão Queer em Veneza, prêmio concedido aos melhores filmes de temática gay.

Após uma frutífera filmografia em curtas-metragens, Mandico realizou Os Garotos Selvagens, seu primeiro longa-metragem, no qual acompanhamos um grupo de garotos delinquentes que estupra e mata friamente uma professora. Eles são levados a julgamento e fica decidido que são tudo, menos inocentes. Suas famílias burguesas concordam que os terríveis rapazes devem passar uma temporada em alto mar na embarcação sem tripulação de um severo capitão. Famoso por endireitar jovens malcomportados, ele promete ser capaz de transformar qualquer garoto violento em um ser dócil e civilizado, incapaz de revidar uma ofensa.

A questão do livre-arbítrio, central no filme, é tão antiga quanto a humanidade, e inspirou grandes clássicos como A Ilha das Almas Selvagens (1932), Zero de Conduta (1933) e, evidentemente, Laranja Mecânica (1971). Mandico bebe na fonte destes e de muitos outros filmes para realizar uma obra única e pessoal. Esteticamente, a linda fotografia em preto e branco nos faz pensar em Carl Th. Dreyer, em especial na cena do julgamento, cuja trilha sonora e efeitos visuais dão um quê de pureza, de sagrado, em contraponto com o cinismo dos jovens réus. Aliás, o cinema de Mandico traz com muita força uma noção de dualidade entre bem e mal, desejo e culpa, “uma mistura de salgado e doce, ácido e leite”. Afinal, é possível interferir nas escolhas e tolher o ímpeto destruidor de alguém?

Embora predominem as imagens monocromáticas, Os Garotos Selvagens tem alguns delirantes usos de cores, luzes e brilhos, e impressionantes trucagens de efeitos de sobreposição que, executados diretamente na câmera, são uma marca peculiar do diretor. Essas características aproximam sua obra das artes plásticas e inspiram questionamentos sobre as possibilidades experimentais do cinema.

E Mandico não está sozinho. Seu trabalho mais recente é Ultra Pulpe, segmento que integra o programa Ultra Rêve, que traz ainda os curtas After School Knife Fight (2017), de Caroline Poggi e Jonathan Vinel, e Les Îles, de Yann Gonzalez. Os diretores possuem estilos muito semelhantes entre si e lançaram recentemente o manifesto Flamme, uma forma de reafirmar a necessidade da imaginação e combater a normatividade que predomina no mundo em que vivemos.

Ultra Pulpe, também em cartaz na Crash, é praticamente a representação audiovisual do manifesto, uma carta de referências nos moldes do que fez Jean Luc Godard – porém, ao invés dos tradicionais azul e vermelho, oferece um banquete de cores e corpos nus em plena atividade. A diretora interpretada por Elina Löwensohn, claramente o alterego de Mandico, fica entre o virtuosismo de Max Ophüls e a indecência de Joe D’Amato. Em uma entrevista recente, Mandico definiu o cinema do polonês Walerian Borowczyk como uma agulha enfiada em um pêssego macio. E é da mesma maneira que podemos definir o cinema de Mandico, que produz sedutoras imagens de beleza e ternura a partir do horror e da feiura.

Publicado originalmente no catálogo da mostra Crash, em dezembro de 2018.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com doutorado-sanduíche na Universidade de Sorbonne (Paris), ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Criou em 2017 a revista eletrônica Les Diaboliques, onde compartilha sua paixão pelos filmes de horror.

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