Críticas
A substância (2024)
O star system é uma fábrica de sonhos monstros, que explora suas estrelas e as rejeita quando perdem o viço da juventude. As primeiras vítimas desse esquema predatório foram muito bem representadas na obra-prima Crepúsculo dos deuses (Sunset Blvd., 1950), de Billy Wilder. Notadamente Norma Desmond (Gloria Swanson), estrela nos anos 1920, é desprezada pelo estúdio e relegada nas décadas seguintes a sofrer uma triste vida de memórias em sua mansão decadente, em volta de um bando de “bonecos de cera”, como eram chamados seus colegas, atores aposentados como ela.
De certo modo, estes ciclos do estrelato ao ostracismo se repetem a cada geração na indústria audiovisual. Atores e, principalmente, atrizes, que víamos nas telas em todo o esplendor, estampam as capas das revistas de fofoca, que “denunciam” os quilos a mais, as rugas a mais. A consequência imediata disso é a obsessão pela manutenção da aparência juvenil e o encadeamento de cirurgias plásticas que hoje refletem não apenas nas mulheres inseridas no show business, mas também em mulheres comuns, que iniciam esse processo cada vez mais cedo. Com a popularização de práticas estéticas disfarçadas de “amor próprio”, sustentadas pelo discurso neoliberal de “autocuidado” e “empoderamento”, intervenções cirúrgicas dolorosas e danosas à saúde têm sido amplamente banalizadas.
É nesse universo que se situa A substância (The Substance, 2024), segundo longa-metragem da cineasta francesa Coralie Fargeat, cujo filme de estreia, Vingança (Revenge, 2017), inflamou debates e rendeu tanto fãs quanto detratores por sua abordagem do controverso subgênero estupro e vingança. Estrelado por Demi Moore, atriz que estourou com o romance sobrenatural Ghost: do outro lado da vida (Ghost, 1990), tornando-se um dos rostos mais conhecidos daquela década, A substância um propõe um mergulho delirante na vida de uma ex-estrela obcecada por recuperar aparência e a forma física de sua juventude depois de descobrir que os produtores de seu programa de aeróbica¹ planejam substituí-la por uma mocinha “com tudo em cima”. Um estranho oferece-lhe informações sobre um esquema que promete entregar uma versão mais jovem e, portanto, melhor de seus usuários. O procedimento é aparentemente simples: basta injetar uma substância experimental para que essa nova versão surja; as regras, porém, são extremamente rígidas e não permitem deslizes. No banheiro de casa, Elisabeth injeta o líquido em seu corpo e, através de um parto grotesco, dá à luz a si mesma, uma mulher linda, com a pele e o corpo impecáveis, a quem ela dá o nome de Sue (Margaret Qualley²). Apesar de serem dois corpos diferentes, as duas continuam sendo apenas uma; por isso, não convivem uma com a outra, mantendo rotinas separadas e alternadas a cada sete dias. Mas como seguir compartilhando entre dois corpos uma só essência?
Se em Vingança Fargeat aborda o vilipêndio do corpo pela consumação do abuso sexual, em A substância ela o faz pela via do olhar, pela forma como as câmeras se posicionam estrategicamente sobre o corpo feminino, extraindo dele tomadas dos seios, das nádegas, das coxas, que são consumidas até não sobrar mais nada. O registro da imagem funciona aqui como um elemento perturbador: no imenso retrato que Elisabeth mantém em sua sala ela ostenta uma figura que não reconhece mais ao se olhar no espelho, o constante lembrete de uma agradável aparência que ficou para trás. A flacidez da pele, seus vincos e todos os outros sinais da idade que a maquiagem não consegue mais ocultar são um gatilho para a ex-estrela; sinais estes que avançam freneticamente quando Sue começa a tomar conta da sua vida. Nesse momento, Elisabeth torna-se ela mesma uma espécie de “retrato de Dorian Gray”, usada por seu duplo numa espécie ultra bizarra de autofagia.
Muitas questões relativas ao envelhecimento feminino³ são trazidas à tona em A substância, entre elas a da infertilidade. A mulher que envelhece perde o sentido de existir perante à sociedade tanto por deixar de servir como objeto de desejo, quanto pela impossibilidade de gerar filhos. A brilhante ironia é que, ao parir a si mesma, Elisabeth acaba passando, de certa forma, pela experiência de ser mãe, e passa de objeto de desejo a objeto de abjeção.
Desde meados dos anos 2010, quando houve uma explosão de filmes de horror autorais dirigidos por mulheres, há uma tendência para a reavaliação da figura da mulher abjeta. Se, por muitos anos, vimos com certo distanciamento personagens como bruxas, mulheres monstruosas, maníacas, vilãs etc, hoje em dia a tônica é narrar as histórias do ponto de vista dessas mulheres, humanizás-la, e o subgênero do body horror é uma ótima via para isso, já que, basicamente, fala sobre o descontrole do próprio corpo, o que costuma despertar a empatia do público. Apesar de ter uma aparência que gera incômodo e desconforto, não há qualquer dúvida de que Elisabeth é a grande vítima dessa perversa cadeia representada principalmente por Harvey (Dennis Quaid), produtor com síndrome de Pigmaleão que deseja controlar suas estrelas como se fossem bonecas moldáveis.
Fazendo jus à escola francesa, Fargeat segue sendo uma provocadora e faz aqui um filme exagerado em todos os aspectos. Se por um lado os excessos de violência e gore acabam sendo um dos melhores pontos de A substância, no sentido de não temer o ridículo e abraçar o body horror com os braços e as pernas (e demais membros sobressalentes), os excessos de estímulos adotados na montagem e na música acabam tornando o filme cansativo e demasiadamente prolongado, bem como um acumulado de referências a clássicos do horror que saltam da tela e soam superficiais. Ficamos com a impressão de que a diretora estava profundamente apaixonada pelo conceito do filme e não quis deixar absolutamente nada de fora, inclusive repassando detalhes que já estavam bastante evidentes. Entretanto, estes são fatores que não interferem na experiência empolgante de ver um filme provocativo que transpira a audácia tanto de sua diretora, quanto de sua dupla de protagonistas, absolutamente entregues a seus papéis.
¹ Destino comum para muitas celebridades nos anos 1980 e 1990, entre as quais Jane Fonda, Olivia Newton-John, Raquel Welch, Cher e até a scream queen Linnea Quigley tiveram os seus momentos de suar as polainas diante das câmeras. Esta última, em um vídeo temático de horror que se tornou uma verdadeira obra cult.
² Não por acaso, Sue é interpretada por Margaret Qualley, atual atriz-coqueluche de diretores como Yorgos Lanthimos, Claire Denis, Ethan Coen, Quentin Tarantino e outros; e filha de Andie MacDowell, que, como Demi Moore, foi uma das grandes estrelas dos anos 1990. Aos 66 anos e orgulhosa de sua cabeleira grisalha, MacDowell declarou recentemente à revista Marie Claire que não se preocupa com a sua aparência, e sim com o seu bem estar mental e intelectual, já que envelhecer é inevitável. Mas assumiu que o preconceito projetado contra as mulheres que envelhecem é frustrante e demonstra o quanto somos desvalorizadas.
³ O medo das mulheres que envelhecem aliado ao fascínio pela decadência da Hollywood clássica fomentou a partir dos anos 1960 o chamado hagsploitation. Filmes como O que terá acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?, 1962), Com a maldade na alma (Hush, Sweet Charlotte, 1964) e Almas mortas (Strait-Jacket, 1964), entre outros, traziam atrizes consagradas do nível de Bette Davis, Olivia de Havilland, Joan Crawford e outras no papel de senhoras frequentemente loucas e perigosas.
Leitura recomendada:
📚 Return of the Monstrous-Feminine: Feminist New-Wave Cinema (Barbara Creed). Routledge, 2022.
Alguns filmes recomendados: