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Críticas

A sombra do pai (2019)

O longa-metragem mergulha no cotidiano solitário de uma menina que acredita poder trazer a mãe de volta dos mortos

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✋Atenção: este texto contém revelações sobre a trama.

Dalva (Nina Medeiros) é uma criança solitária que, após a perda da mãe, vive na companhia do pai, Jorge (Júlio Machado) e da tia, irmã dele, Cristina (Luciana Paes). A mulher faz as vezes de mãe e de irmã mais velha. Ao ficar noiva, não demora a sair de casa, e Dalva precisa assumir algumas responsabilidades de gente adulta. A situação fica complicada quando o pai passa a agir estranhamente, alienado em um estado macambúzio. Abandonada à própria sorte, Dalva improvisa pequenos feitiços para trazer sua mãe de volta do mundo dos mortos.

REFERÊNCIAS E ORIGINALIDADE

A premissa da personagem que perde alguém da família e interfere no curso natural das coisas para trazê-la de volta por meio de algum tipo de ritual tem origem, provavelmente, no conto A pata do macaco, do autor britânico W.W. Jacobs. Publicado pela primeira vez em 1902, conta a história de um homem que perde o filho em um acidente horrível e, por meio de uma pata de macaco mumificada, deseja que ele volte vivo para casa. É muito interessante que A sombra do pai venha a público bem na época em que o clássico Cemitério maldito, dirigido por Mary Lambert, completa 30 anos do seu lançamento, e com exatamente uma semana de antecedência da estreia de sua refilmagem pelas mãos dos diretores Kevin Kölsch e Dennis Widmyer. Na história original, um homem inconformado com a perda do filho enterra a criança morta em um cemitério místico na esperança de que ele volte para casa. A sombra do pai reverencia com entusiasmo o clássico de 1989, mostrando alguns dos trechos mais sangrentos e até reproduzindo uma frase marcante “volta pra mim, mãe. Volta pra gente” (no original, “Come back to me, Gage. Come back to us”) na boca de Dalva. Outra referência que faz os olhos dos fãs de horror brilharem é o fragmento de A noite dos mortos-vivos (1968), de George Romero, tido como o melhor filme sobre zumbis da história do cinema. Além do valor de homenagem, os excertos dos filmes sinalizam a origem da inspiração para os rituais da menina, já que se refugia naquele universo cinematográfico sinistro, onde recuperar seus entes queridos é uma possibilidade, e dão uma pista no que o pai dela está se transformando: um morto em vida.

O que impressiona é que mesmo com um filme repleto de referências a diretora e roteirista Gabriela Amaral Almeida tenha conseguido fazer algo tão pessoal e com marcas da sua própria filmografia. Uma coisa que caracteriza praticamente todos seus personagens é a solidão e a rejeição. A magia e o sobrenatural estão, portanto, dentro de um contexto muito familiar, intimista. O círculo de pessoas próximas das crianças retratadas por Gabriela é sempre muito pequeno.  E é aqui que a autora se permite uma autocitação, reproduzindo a sensação de desconforto e mal-estar da festa infantil malsucedida de A mão que afaga. Esse lugar incômodo, tragicômico, em que ela nos coloca, é a assinatura da diretora. O curta é evocado ainda em uma cena rápida, mas muito comovente, da menina acariciando a luva do pai. Sem qualquer demonstração de afeto da parte dele, ela toca aquilo que o representa melhor. Tanto no curta quanto no longa, a luva é um elemento de trabalho e, ao que parece, o tema central de A sombra do pai.

O SOLDADOR FANTASMA OU O ESVAZIAMENTO DO TRABALHO

Quando o caixão da mãe de Dalva é exumado, a menina recebe uma caixa com seus pertences, aos quais se apega e utiliza como meio de invocar sua presença. Ao contrário de Dalva, que se agarra a migalhas de recordações da mãe na tentativa de que sua lembrança não desapareça deste mundo de uma vez por todas, Jorge parece vazio por dentro. Preso em uma rotina mecânica e exploradora, construindo e erguendo prédios nos quais provavelmente nunca entrará depois de prontos, o pai não só está morto em vida como contamina com a morte toda a natureza ao seu redor. Alienado pelo trabalho, deixa faltar comida em casa e se entrega ao medo de não poder prover o sustento de sua família.  É o retrato da falência do masculino e a reação é a mais trágica possível. Em alguns dos melhores momentos de A sombra do pai, surge uma figura sinistra, um homem vestido de soldador, sempre envolto em hipnotizantes faíscas. Quando Jorge finalmente consegue se aproximar dele e tirar sua máscara, depara-se com a nulidade de sua própria existência.

A trilha sonora de Rafael Cavalcanti consegue transmitir toda a sensação de solidão e pesar dos personagens, além de ser um tanto fantasmagórica e funcionar bem em prol do horror. A jovem Nina Medeiros assumiu um grande desafio ao desempenhar o papel principal, e o cumpriu com competência, até porque esteve muito bem amparada por Júlio Machado e Luciana Paes, sempre excelente. Há ainda um uso muito interessante do som quando a amiga de Nina faz um feitiço contra seu irmãozinho recém-nascido. Criatividade e poder de sugestão resultam em uma cena chocante e assombrosa.

Gabriela Amaral Almeida surgiu como uma das grandes promessas do cinema fantástico nacional, construindo uma trajetória sólida com seus curtas-metragens, expectativa que se reforçou com o lançamento de seu primeiro longa, O animal cordial (2018). Agora com A sombra do pai esse talento fica ainda mais evidente, combinando com maestria elementos de horror clássico, drama intimista e uma forte atmosfera de decadência social, repleto de momentos assustadores e com a poesia trágica e melancólica inerente às melhores realizações neste gênero.

 

A SOMBRA DO PAI (Brasil, 2019)

Direção e roteiro: Gabriela Amaral Almeida
Elenco: Júlio Machado, Nina Medeiros, Luciana Paes
Classificação: 16 anos
Distribuição: Pandora Filmes

▶ Clique aqui para visualizar o trailer.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com doutorado-sanduíche na Universidade de Sorbonne (Paris), ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Criou em 2017 a revista eletrônica Les Diaboliques, onde compartilha sua paixão pelos filmes de horror.

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