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Críticas

Grave (2016)

Crítica sobre o filme de Julia Ducournau, escrita para o Cineclube Delas.

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Em 2001, a diretora francesa Claire Denis realizou Desejo e obsessão, sobre um cientista que trabalha para curar sua esposa doente: ela tem um incontrolável apetite sexual, associado ao canibalismo, e foge de casa para fazer vítimas aleatórias em lugares ermos, poupando assim o marido. No ano seguinte, Marina de Van lançou Em minha pele, em que ela mesma interpreta uma mulher que, após sofrer um acidente, torna-se obcecada em se ferir e comer a própria pele. Estes são apenas dois dos representantes da chamada “New French Extremity”, uma onda de filmes de horror corpóreo que teve seu auge entre os anos 2000 e 2005.

“Desejo e obsessão”, de Claire Denis

Pelo menos desde a invenção do gore, nos anos 1960, pode-se pensar que quase todo horror é corpóreo, afinal, “sangue e tripas” é uma das principais premissas do gênero. O que diferencia o horror corpóreo dos outros tipos de horror é a importância e a simbologia que se confere à destruição ou à transformação do corpo, transitando de maneira muito espontânea entre o sexo e a violência e dando forma a questões existenciais de maneira bastante gráfica, explícita.

Em 2016, cerca de 15 anos mais tarde desse ciclo extremo, a cineasta também francesa Julia Ducournau realizou Grave (sem título brasileiro e mais conhecido pelo nome internacional, Raw) pelo qual concorreu à Câmera de ouro em Cannes, prêmio oferecido a diretores estreantes em longas-metragens. O filme conta a história de Justine, uma garota vegetariana que, após comer um pedaço de carne crua em um trote da universidade, começa a desenvolver uma reação alérgica com escoriações pelo corpo, acompanhada de um forte desejo de comer carne humana.

O interesse pelo tema do horror corpóreo já havia aparecido no curta-metragem Junior, dirigido por Ducournau em 2011. Estrelado pela mesma atriz do longa, Garance Marillier, o curta mostra as transformações pelas quais passa Justine, vulgo Junior, uma pré-adolescente moleca que está descobrindo a sexualidade. Ducournau filma com atenção os detalhes da constituição física da menina púbere: os pelos do rosto, as espinhas, o corpo mirrado em comparação às outras garotas mais desenvolvidas do que ela. Um dia, Justine passa a sentir, literalmente, as dores do crescimento: seu corpo começa a se transformar como o de qualquer pré-adolescente, mas Ducournau exagera na representação, lugar em que reside a característica do horror exercitado pela cineasta. Ao invés das estrias, a pele se abre completamente, deixando os ossos da espinha à mostra; o gozo, por sua vez, é um líquido viscoso que se espalha por todos os cantos do quarto.

“Em minha pele”, de Marina De Van

Grave, não é difícil perceber, fala sobre canibalismo querendo falar de sexo. Marillier interpreta aqui a mesma personagem, Justine, em uma nova fase da vida sexual. Em um momento da festa é possível ler uma pichação que diz “Junior is dead”, em referência ao curta-metragem: Junior ficou para trás, agora Justine está se descobrindo como mulher. A diretora e roteirista Ducournau insere nessa questão pontos como autoimagem, insegurança e o olhar para si mesmo, interna e externamente. Ela toca ainda no mote da identidade de gênero e da orientação sexual, que podem ser flutuantes, e não estagnadas como se imagina.

Uma tarefa interessante para desvendar Grave é atentar às canções escolhidas para compor a trilha sonora. O rap “Plus putes que toutes les putes” (Mais puta que todas as putas), da dupla de irmãs gêmeas Ortie, fala desavergonhadamente sobre dominação feminina, misandria, assassinato, drogas e necrofilia, e é tocado na cena em que Justine passa um batom vermelho e dança diante do espelho, como se finalmente estivesse reconhecendo sua agressividade erótica.

“Grave”, de Julia Ducournau

A canção “Despair, hangover and ecstasy” (Desespero, ressaca e êxtase), da dupla The Dø, fala sobre a frustração de dar o melhor de si e sempre falhar consigo e com os outros ao seu redor, funcionando quase como um raio-x de uma ou mais gerações que vive mergulhada em uma inércia, correndo sem sair do lugar. Um mal-estar generalizado que cada vez mais domina as narrativas de horror contemporâneas. Com Grave, Ducournau faz um retorno à própria obra, mas, principalmente, resgata muitas das ideias trabalhadas pelas cineastas que vieram antes dela, como Claire Denis e Marina de Van, e também Catherine Breillat (Romance) e Virginie Despentes (Baise-moi). Enquanto no filme de Denis a personagem doente busca pessoas desconhecidas para devorar e no filme de de Van a protagonista devora a si mesma, Grave mostra os efeitos de destruir a quem se ama.

Texto escrito a convite do Cineclube Delas em setembro de 2017.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com doutorado-sanduíche na Universidade de Sorbonne (Paris), ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Criou em 2017 a revista eletrônica Les Diaboliques, onde compartilha sua paixão pelos filmes de horror.

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