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Críticas

O animal cordial (2018)

A estreia da cineasta Gabriela Amaral Almeida na direção de um longa-metragem é uma violenta e cruel crônica sobre relações de poder num enredo repleto de horror e suspense

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O cinema de horror brasileiro está vivendo um de seus melhores momentos atualmente, surgindo de forma muito espontânea em nossa produção contemporânea. A diretora Gabriela Amaral Almeida, baiana radicada em São Paulo, era uma das promessas do gênero desde que realizou os curtas-metragens A mão que afaga (2012) e Estátua! (2014), nos quais já demonstrava uma forte sensibilidade para contar histórias de personagens estranhos e deslocados, ambientados em um único cenário, sempre com um toque de surrealismo. Em O animal cordial, primeiro longa-metragem de Gabriela, a ação se dá em um restaurante grã-fino (porém decadente) em fim de expediente. Logo no primeiro minuto, a câmera atenta de Gabriela faz um panorama do salão do restaurante, como quem espia pela janela. Alguns diálogos e gestos pontuais, e enquadramentos precisos são o suficiente para dizer que se trata de relações de poder entre patrão e empregados, mas também entre gêneros e classes. A abnegada e submissa Sara (Luciana Paes) é secretamente apaixonada por Inácio (Murilo Benício), o patrão, e parece estar imersa numa dimensão à parte em que uma pragmática conversa sobre toalhas de mesa tomam ares de encontro romântico. Porém, Djair (Irandhir Santos), o cozinheiro – homossexual, nordestino, vaidoso, rebelde e de integridade inabalável –, não mede esforços para trazê-la de volta para a realidade. Alguns clientes chegam poucos minutos antes da cozinha fechar e os dois empregados são obrigados a ficar além do horário. Confirmando um clima de tensão crescente desde o início do filme, dois assaltantes subitamente invadem o restaurante e fazem todos como reféns.

O DIA DA DESFORRA

O animal cordial não se encaixa em uma definição convencional de horror, estando muito mais próximo de filmes de crime como Um dia de cão (1975) ou Antes que o Diabo saiba que você está morto (2007), ambos dirigidos por Sidney Lumet, nos quais personagens decadentes social ou moralmente (ou ambos), ao tentar resolver um contratempo, desencadeiam uma série de outros problemas, sem perspectiva de resolver a situação. O que faz com que a obra de Gabriela se diferencie destes filmes e seja abraçado pelo gênero é seu tom quase místico, ritualístico, além da violência gráfica. É como se suas personagens, em geral muito passivas nos curtas-metragens, despertassem para uma desforra, e isso é combinado com atuações acachapantes. Inclusive atores já bem conhecidos do público, como Murilo Benício e Camila Morgado, estão completamente entregues aos seus papéis e têm um desempenho surpreendente. O talento de Irandhir Santos, um dos grandes atores de sua geração, é bem aproveitado, mas é Luciana Paes que recebe um desafio maior: o de ser muitas mulheres dentro de uma, e a atriz se agarra a essa metamorfose de maneira vigorosa. Violência e sexo se misturam numa cena pungente, consequência de um desejo que vinha sendo alimentado há muito tempo. Com a pele completamente coberta de sangue e com o corpo em espasmos que se assemelham a uma possessão, vemos quem de fato está no comando. A trilha sonora eletrônica, composta por Rafael Cavalcanti, evoca compositores como Wendy Carlos, de O iluminado (1980) e Angelo Badalamenti, parceiro de muitos filmes de David Lynch, e trabalha muito bem em função da transformação da personagem.

O uso recorrente de líquidos corpóreos – saliva, vômito, urina e, evidentemente, sangue – faz lembrar que, assim como o coelho que vira jantar na cozinha comandada por Djair, somos feitos de carne, e o que nos difere desses animais são os acordos sociais e os papéis que desempenhamos diariamente em família, entre amigos e no trabalho. O momento em que Inácio ensaia suas falas diante do espelho reforça a ideia que todos somos atores no dia-a-dia, numa constante encenação em que a cordialidade pode ser a mais perigosa e dissimulada das máscaras sociais.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com doutorado-sanduíche na Universidade de Sorbonne (Paris), ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Criou em 2017 a revista eletrônica Les Diaboliques, onde compartilha sua paixão pelos filmes de horror.

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4 Comments

4 Comments

  1. Evandro Saldanha

    11 de junho de 2019 at 03:13

    Encantado com a crítica da mesma forma com o filme. Poucos filmes de terror conseguem me paralisar como foi o caso deste…

    • Beatriz Saldanha

      11 de junho de 2019 at 06:18

      Muito obrigada pela leitura e pela apreciação. O filme de fato é impressionante. Abraços!

  2. João Felippe

    27 de junho de 2019 at 21:31

    “Annabelle 3 se distancia dele quando a figura da médium experiente (no caso, Lorraine Warren) se afasta e pessoas comuns precisam lidar com aquela situação. Particularmente, é o meu tipo preferido de narrativa.”, isso gera uma boa reflexão, mesmo. Realmente, as pessoas comuns ou que não esperam exatamente o sobrenatural são mais interessantes. Até mesmo aqueles pós-graduados na igreja de Prince of Darkness (1987) não esperam nada sobrenatual, e isso torna aquela equipe de universitários mais interessante do que se autodeclarassem especialistas do sobrenatural ou coisa do tipo.

  3. ISAC DOS SANTOS PEREIRA

    20 de março de 2022 at 21:20

    aDOREI SUA PÁGINA!!! qUE DEMAIS SABER QUE EXISTE UM TRABALHO TÃO LEGAL, MINUCIOSO, COM MUITA QUALIDADE NA INTERNET. PARABÉNS PELA DEDICAÇÃO!!! COM CERTEZA, IREI COMPARTILHAR ESSA PÁGINA.

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