Críticas
Os cinco diabos (2022)
Vicky (Sally Dramé), uma garotinha de oito anos, desenvolveu um super olfato que faz com que reconheça odores em seus mínimos detalhes. Ela tem o hábito de recolher materiais em potes etiquetados para revisitar alguns desses cheiros, entre eles o de sua mãe, com quem nutre uma forte relação de parceria e por quem tem uma devoção acima do normal. Joanne (Adèle Exarchopoulos), a mãe de Vicky, foi ginasta no passado e hoje dá aulas de hidroginástica no ginásio Os Cinco Diabos; seu pai, Jimmy (Moustapha Mbengue), é um imigrante senegalês que trabalha como bombeiro. Joanne tenta salvar seu casamento de uma crise quando Julia (Swala Emati), sua cunhada recém-liberada da prisão, reaparece na vida do casal. A chegada dela abala completamente o cotidiano familiar, pois alguns segredos obscuros são trazidos à tona e a novidade incomoda profundamente a pequena Vicky, que, enciumada, recorre ao seu dom com os odores para se transportar às memórias de sua família.
Escrito e dirigido por Léa Mysius, cineasta francesa formada pela La Fémis, Os cinco diabos é um filme feito com toda delicadeza desde a sua estrutura narrativa, que apresenta o background das personagens ao poucos, inserindo novos elementos de maneira sutil, até que, quando percebemos, estamos completamente envolvidos por suas protagonistas. A tensão e o mistério que permeiam o filme compartilham espaço com o amor e a devoção em suas diversas formas: o amor romântico entre mulheres, o amor de mãe e filha, de família… e como equilibrar esse amor? Ele pode ser compartilhado? Quantas pessoas cabem em um só coração? Essas dúvidas povoam a cabeça da pequena Vicky, menina solitária que sofre com ataques racistas na escola e que se refugia na devoção pela mãe, que literalmente lhe confia a vida ao deixar aos seus cuidados um cronômetro que controla o tempo que passa nadando em um lago gelado. Essa confiança que tanto valoriza é a maneira de demonstrar sua importância na vida da mãe, e quando uma segunda pessoa, uma mulher, tenta ocupar esse lugar, seu mundo desmorona.
É possível relacionar Os cinco diabos a trabalhos prévios de outras três ótimas cineastas: Claire Denis (curiosamente, Mysius é uma das autoras do roteiro de Stars at Noon), no uso do silêncio e dos gestos para falar de amor e outros sentimentos; Gabriela Amaral Almeida, pelo olhar atento para a infância, suas angústias e suas inclinações sobrenaturais, e Charlotte Wells, pela sensibilidade ao abordar as memórias e as relações intrafamiliares, bem como por identificar a potência da música popular na construção dos afetos (é bom saber que o recurso do karaokê, ainda que muito utilizado no cinema independente contemporâneo, não está completamente desgastado e provoca efeitos emocionais intensos).
Mysius trabalha bem contraposições dialéticas, como da água e do fogo. Como Julia, a namorada do passado que ela teima em rejeitar, é associada ao fogo, “uma piromaníaca”, Joanne se refugia não apenas na água, mas na água gelada, como se quisesse se proteger e se afastar da vida que teve ao lado de Julia. Ainda que não aprofunde na discussão (e nem parece que esse seja o propósito), a cineasta traz temas como o racismo e a homofobia vistas por uma perspectiva doméstica, mas que toma proporções maiores quando as pessoas da cidade começam a revelar suas impressões sobre o retorno de Julia, que foi responsável por um acidente que deixou traumas nos habitantes do lugar. Por muito tempo estigmatizada, ela tem a chance de se redimir. No fim das contas, Os cinco diabos é um filme otimista sobre ter paciência, ter confiança e saber perdoar, sobre a permanência do amor. Um filme original e envolvente que traz uma dose de frescor e leveza ideal para o tempo em que vivemos, e com um final provocativo que deixará dúvidas e reflexões.