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Pazucus: A ilha do desarrego (2017)

Uma multicolorida orgia de vômito e absurdo ou A angustiante e escatológica saga de Carlos, Omar e Oréstia na natureza

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O catarinense Gurcius Gewdner é uma das figuras mais conhecidas – e divertidas – da cena underground brasileira nos últimos vinte anos, um multiartista – desenhista, cineasta, dublador, performer, músico – que realizou alguns dos mais cultuados e ultrajantes exemplares do audiovisual nacional (Mamilos em Chamas, para mencionar apenas uma de suas peculiares obras). O longa-metragem Pazucus: A Ilha do Desarrego dá continuidade à ideia apresentada inicialmente no curta Bom Dia, Carlos (2016), que tinha a proposta de representar os problemas do homem numa grande cidade; no caso, Florianópolis. O curta mostrava a angústia de Carlos (Marcel Mars), que escuta vozes vindas de seu estômago e não consegue evacuar, pois os cocôs em seu intestino têm medo de sair do corpo. Desesperado (a propósito, desespero é a palavra-chave aqui: “Eu quero cagar o meu cocô!” é uma frase antológica do curta) e em busca de ajuda, Carlos não para de telefonar para seu psiquiatra (Dr. Roberto, também interpretado por Mars), que não suporta a amolação e sai à procura do paciente para matá-lo.

Em Pazucus, temos uma visão privilegiada do que acontece dentro do estômago de Carlos: os cocôs se reúnem em torno do profeta Deuteronomius XK20 e decidem o seu futuro, enquanto o homem sofre de prisão de ventre e se debate em dor pelas ruas da cidade. Além disso, entram os personagens Oréstia (Priscilla Menezes) e Omar (Gurcius Gewdner), um casal em crise conjugal que vai à praia na tentativa de relaxar e salvar o relacionamento. Simultaneamente, jovens aleatórios festejam próximo dali. As três tramas correm separadas até, enfim, se encontrarem, como num enorme exercício de montagem paralela.

Três filmes estrangeiros foram essenciais para a concepção de Pazucus: o terror italiano Un Gatto nel Cervello (1990), de Lucio Fulci, serviu de modelo para o enredo de Carlos e o psiquiatra assassino. O australiano Um Longo Fim de Semana (1978), de Colin Eggleston, traz o conceito do casal versus natureza que vemos nas cenas de Oréstia e Omar. Por sua vez, as cenas em que Carlos vomita em agonia pelas ruas, tiveram inspiração na clássica cena do metrô no filme franco-alemão Possessão (1981), de Andrzej Zulawski. Ainda que seja bastante referente a estas obras cinematográficas, não é exagero algum afirmar que Pazucus é um dos filmes brasileiros mais autorais nos últimos anos.

Amparado por um rico repertório artístico e pessoal, Gurcius realizou um filme único e desconcertante. Ainda que pareça naïf pela evidente precariedade dos objetos de cena (grande parte feito de cartolina, papelão e papel machê), que transparecem a limitação orçamentária, ou pela brutalidade de alguns diálogos que se repetem de maneira histriônica (“Coitado do patinho!”, “Meu ovo, meu ovo!”), o cinema de Gurcius passa longe de ser simplório ou ingênuo. É interessante perceber a maneira como os atores se movimentam em cena, com seus corpos convulsivos apontando para um certo mal-estar coletivo da contemporaneidade, reforçado pelas frases de horror de Oréstia e Omar ao se depararem com Carlos em seu estado deplorável, todo vomitado: “Meu Deus, um pobre! Um pobre! Meu Deus!” Um diagnóstico torto e desagradável de uma sociedade doente, e também uma espécie de ensaio sobre a culpa ancestral que nos atormenta, pelas ações humanas para com a natureza e para com a nossa própria raça. Temos direito de interferir no curso de outras vidas?

Gurcius representa suas ideias de maneira muito gráfica e incisiva, e seu cinema cobra uma resposta corporal de quem assiste. Para tanto, em algumas sessões o cineasta distribui sacos de vômito personalizados para aqueles espectadores mais sensíveis às imagens na tela. Extrapolando os limites do razoável, Gurcius propõe uma experiência que palavras não podem definir – é necessário ver para crer.

Publicado originalmente no catálogo da mostra Trash, em dezembro de 2017.

Pesquisadora, crítica, curadora e realizadora cearense radicada em São Paulo, escreve regularmente sobre filmes para livros, encartes de homevideo e catálogos de mostras, além de integrar curadorias e júris de festivais pelo país. Doutoranda em Comunicação Audiovisual (UAM-SP) com doutorado-sanduíche na Universidade de Sorbonne (Paris), ministra palestras e cursos livres sobre cinema. Criou em 2017 a revista eletrônica Les Diaboliques, onde compartilha sua paixão pelos filmes de horror.

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